Livro relata o cotidiano de internos da CASE

Arquivo pessoal

Imagine não ter, dia após dia, ano após ano, um espaço próprio e não poder escolher com quem estar, o que comer e aonde ir. Além disso, estar em um lugar estranho com ameaças e suspeitas por toda parte, e que amor ou mesmo um toque humano gentil sejam difíceis de encontrar. Imagine ainda estar separado da família e dos amigos.

Para lidar com esse tipo de ambiente social, jovens em cumprimento de medida socioeducativa no Centro de Atendimento Socioeducativo de Novo Hamburgo precisam se adaptar. Especialmente aqueles que cumprem internação mais longa. Tornar essa rotina menos pesada e promover a ressocialização dos internos foi o ponto de partida de um projeto pioneiro e revelador.

A iniciativa partiu da psicóloga da CASE hamburguense Márjori Heitich Fontoura, que queria retomar um antigo projeto desenvolvido na instituição de oficinas de hip hop. Com a ideia na cabeça, Márjori convidou o músico Wesley Sales do grupo Além dos Muros, de Campo Bom, para ministrar as aulas, o convite do novo desafio foi aceito de imediato e a parceria deu tão certo que um livro foi lançando com as músicas compostas pelos jovens. “Foi uma parceria incrível em todo processo, pois, além da técnica e sua experiência, ele trouxe também valores que puderam ser trabalhados durante as oficinas. Naqueles momentos, música e crítica social se misturavam, despertando nos jovens a curiosidade e a vontade de reproduzir a sua própria realidade através das letras de músicas”, comentou a psicóloga.

As oficinas

Durante seis meses, doze internos da instituição participaram das oficinas semanais de hip hop. As aulas didáticas abordaram temas como a produção musical, a escrita dos poemas, as letras dos MC’s, como cantar e os tipos de rimas, onde os jovens foram instigados a criar e se expressar através da música. “Inicialmente senti uma certa resistência por parte deles, por ser quase da mesma idade de muitos que estavam ali, mas aos poucos eles foram se soltando e enxergando em mim um amigo. Alguém que estava lá para ajudar”, revelou Sales, que através das aulas conseguiu mobilizar aqueles jovens, cujas histórias foram marcadas pelo contexto de marginalidade, da violência e da criminalidade. “Entrei de peito aberto, querendo fazer a diferença para eles. Acho que isso foi o grande diferencial. O estigma do interno/ detento trava muitas coisas, inclusive a reinserção na sociedade por quem já passou pela CASE”.

Para J.C., de 18 anos, um dos participantes do projeto, conseguir compor as letras de suas músicas é uma válvula de escape na rotina longe de casa. “Antes eu não desabafava, guardava tudo pra mim, aí veio essa oficina e evoluiu a mente, ajudou o cara a falar. Eu fui tentando, vi os piás cantando e fui tentar também”, revelou.

A rima dos internos agora é livro

A história do J.C., de São Leopoldo e muitas outras foram compiladas no livro “O grito de quem nunca teve voz”, lançado no final de 2018 durante a Feira do Livro e a Estação Literária de Cruz Alta. Composto por uma coletânea de poemas, textos e relatos de jovens internos da CASE e pelos músicos do grupo Além dos Muros, Diego Ignácio e Wesley Sales. O lançamento da obra só foi possível através da união de esforços. O custo para a impressão dos 250 primeiros exemplares foi arcado metade por Salles e o restante com contribuições do Sindicato dos Sapateiros de Campo Bom e dos vereadores Tiago Souza e João Paulo Berkembrock
As letras usam a linguagem da periferia para falar da realidade de cada um, seus medos, sonhos e principalmente a saudade da família.

“Quando estava na rua tinha dinheiro e mina
Só queria zoa, não escuta minha rainha
Chegava de madrugada
A senhora na sua cama
Chorando preocupada
Meu filho aonde é que tu andava
Eu não te ouvia nem te dava atenção
Sem pensar na minha vida me perdi nesse mundão”

J.A.K.R., 18 anos.

“Desde pequeno se espelhando nos mais velho, achando que era normal, um queria ser bandido e o outro policial
Como sempre minha coroa avisou pra eu largar desse mundão e pediu: Meu filho tira da cabeça essa história de querer virar ladrão.
Tudo que eu quero é largar essa vida louca. Sair daqui e dá orgulho pra minha coroa!
Hoje na visita eu vi minha mãe chorar, desculpa aí coroa, dessa vida eu vou largar”

G.B.,19 anos e J.S.C.,18 anos.


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